O rosto do Rei
Local: Sala do Exame Privado
As representações de um rei, em vida ou na morte, correspondem sempre a uma projeção com teor político e significados simbólicos. Representando-se de forma mais idealizada do que real, através de diversas manifestações artísticas, o soberano procurava perpetuar o seu legado e a legitimidade da sua dinastia, ao mesmo tempo que a sua memória e imagem, superando contingências biológicas e físicas. Exemplo disso é a escultura, provavelmente já retocada e restaurada ao longo dos séculos, que jaz sobre o túmulo do Rei D. Dinis, falecido em 1325 e sepultado no Mosteiro de Odivelas, do retrato na Sala dos Capelos ou da escultura monumental na Praça D. Dinis.
Contamos, hoje, com uma nova representação de D. Dinis, um dos mais importantes monarcas portugueses e o fundador da universidade portuguesa. Não é, todavia, o resultado da imaginação de um artista ou das preferências de um encomendante. Trata-se do primeiro retrato cientificamente comprovado de um rei português, fruto dos avanços científicos e tecnológicos contemporâneos, realizado a partir dos seus remanescentes, nomeadamente o crânio e o património genético: este é o rosto que a ciência deu ao Rei.
A reconstrução antropológica facial
A abertura do túmulo do monarca foi acompanhada por uma equipa multidisciplinar, de arqueólogos, restauradores, antropólogos, especialistas em medicina dentária e peritos da imagiologia, numa parceria com institutos, laboratórios e universidades nacionais e internacionais.
As grandes questões que nortearam as análises foram, desde logo, saber se o esqueleto era mesmo do Rei, o que se poderia confirmar sobre o homem e a sua vida, o que se poderia saber de inédito com base na leitura dos seus ossos. A intervenção foi conduzida por fases. Após a datação por radiocarbono e a exumação do esqueleto, procedeu-se, no próprio Mosteiro de Odivelas, a uma análise antropológica que permitiu traçar o perfil biológico do esqueleto: confirmou-se ser de um homem, de compleição robusta, com mais de 60 anos na altura da morte, com afinidade populacional europeia e uma estatura em redor de 165cm. Quanto às patologias, foram identificadas degenerações articulares ao nível das vertebras e hérnias nalguns corpos vertebrais. Por sua vez, a análise dentária revelou a inesperada preservação de todos os dentes, com apenas uma cárie desenvolvida e outras duas em fase inicial, para além da existência de alguma doença periodontal.
A análise genética, ainda em curso, permitiu apurar que a origem biogeográfica do Rei era europeia, que os seus olhos eram de tom azul e que tanto a pele quanto o cabelo tinham tonalidade clara. A reconstrução facial, por sua vez, foi desenvolvida a partir de análise morfométrica e digitalização 3D por scanner do crânio e da mandíbula, tendo ainda em conta os dados fornecidos pelas análises genéticas. O excelente estado de preservação do crânio foi crucial para a obtenção de um resultado fidedigno quanto à forma cranial, a altura do rosto, a proeminência do nariz, o queixo algo recuado, a inclinação da testa, as maçãs do rosto e a robustez do occipital.
Entre os aspetos que não puderam ser determinados cientificamente contam-se o cabelo encaracolado, a barba e o bigode, elementos inspirados nas escassíssimas representações coevas do Rei. Também a espessura dos tecidos moles não será 100% fidedigna por depender do índice de massa corporal do indivíduo, o que se desconhece.
A reconstituição da coroa
Sem certezas documentais, artísticas ou arqueológicas que permitissem a reconstituição de uma coroa isenta de dúvidas — não chegou aos nossos dias qualquer coroa dos reis medievais portugueses — e sabendo-se que os monarcas tinham, nos seus tesouros, mais do que uma coroa, e que certamente haveria ao menos uma que se transmitia entre as primeiras gerações dos reis portugueses, consensualizou-se que a coroa representada no túmulo de Pedro I, neto de D. Dinis, executada de forma realista durante a vida do próprio monarca (e apenas escassos 30 anos após a morte do seu avô), poderia servir como modelo de referência.
Pese embora a proximidade formal do modelo (recorte, motivos decorativos, arcatura, altura, etc.), será sempre impossível determinar com certeza quais os materiais efetivamente utilizados: se ouro ou prata dourada, as gemas usadas, preciosas, semipreciosas ou apenas vítreas, pérolas, etc.